Eça de Queiroz realiza, na sua obra literária, afrescos de grande valor icástico da realidade social portuguesa da segunda metade do século XIX.
Introdução e Objectivos
Um elemento que caracterizava de maneira exemplar o hiato entre as classes abastadas e as desfavorecidas era, evidentemente, a alimentação.
Em primeiro lugar, por uma óbvia questão económica: o proletariado urbano ou rural não tinha a possibilidade, se não esporadicamente, de trazer pratos elaborados para as próprias mesas; nas casas burguesas e aristocráticas, pelo contrário, a presença de tais alimentos não só estava disponível, como que constituía a norma diária.
Em segundo lugar, a diferença de hábitos no sector alimentar dava-se pelo status social: mesmo nas casas ricas, onde, em teoria, haveria a possibilidade de submeter a mesma dieta a todos os habitantes, os criados consumiam alimentos mais simples em relação aos que eram reservados aos senhores; lembrar-se-á o horror que provava Julien Sorel à ideia de comer com os servos, na casa do prefeito, e a reprimenda que o pai lhe move de ser guloso; nele, ecoa a raiva de Juliana, que, em O Primo Basílio, anela a comida da patroa, Luísa. “La table” escreve Balzac em La cousine Bette, “est le plus sûr thermomètre de la fortune dans les ménages parisiens.”[1] Efetivamente, nos demais autores realistas e naturalistas europeus aparece o elemento gastronómico qual sinal distintivo social. Assim, em Eça, os sacerdotes de O Crime do Padre Amaro gozam duma mesa farta enquanto os pobres de Leiria passam fome, numa contraposição que chama à memória a injustiça representada por Zola, em Germinal, nas iguarias comidas pelos donos da mina e na escassez das mesas dos obreiros.
Além disto, os usos e as preferências alimentares caracterizam as personagens queirosianas: a sensual Leopoldina, ainda em O Primo Basílio, não sabe resistir ao bacalhau de alhada que o álgido marido lhe nega; nesta perspectiva, ela lembra muito de perto a flaubertiana Emma Bovary, que cobiça o alho, os gelados, as compotas, os xaropes e os licores doces.
Na sociedade portuguesa, aliás, o elemento alimentar e enológico tem uma função simbólica que se torna evidente quando se considerar um produto cultural extremamente significativo, a paremiologia.[2] Talvez por causa deste grande papel cultural, em Eça a culinária é descrita com maior cuidado em comparação com outros realistas e naturalistas europeus, e com um elemento adicional: o uso literário dos produtos típicos da gastronomia portuguesa. O ingénuo Cruges, em Os Maias, constrange-se por ter esquecido as queijadas de Sintra para a pedante mãe; o estrangeirado Fradique Mendes lamenta ironicamente o assado de espeto, já desaparecido das casas portuguesas como as demais velhas tradições, enquanto o infido Teodorico saboreia, às sextas-feiras, o bacalhau da prostituta que frequenta após ter aparentado, com a velha tia, ter comido apenas pão com água. O bacalhau, de resto, é a presença constante na mesa da casa da Misericórdia, em O Crime do Padre Amaro, e dos convívios da alta sociedade lisboeta em Os Maias, enquanto outra iguaria típica, o arroz, nas suas diversas formas de favas, de forno e doce, marcam a contraposição entre o luxo sem sabor de Paris e a simplicidade genuína portuguesa em A Cidade e as Serras.
A escolha de colocar nas mesas de seus personagens os pratos e os vinhos mais ilustres da culinária lusitana caracteriza Eça: o clero ganancioso, a burguesia das intrigas amorosas, a aristocracia antiga e intolerante, a antiquada intelectualidade tardiamente romântica que ele pretende derrotar, são “pratos típicos nacionais” tanto quanto o bacalhau, o arroz doce, os ovos com chouriço, o arroz de forno; tudo isto, acompanhado por um vinho verde ou uma “lágrima” de vinho do Porto, amarga e adocica ao mesmo tempo, como o estilo do autor.
[1] Honoré de Balzac, Œuvres complètes, Paris, Houssiaux, 1874, p. 49.
[2] Vd. Emma De Luca (coord.), Parla come mangi. Lingua portoghese e cibo in contesto interculturale (Viterbo, Sette Città, 2015). Temos uma colectânea de provérbios portugueses ligados à alimentação curada por Mariagrazia Russo onde se destaca o famoso “Quando o pobre come galinha, um dos dois está doente” evocado pela célebre frase no romance A alma dos ricos de Agustina Bessa-Luís: “Não é preciso ser rico para comer; é preciso ser rico para saborear”. Agustina Bessa-Luís, A alma dos ricos, Porto, Guimarães Editores, 2002, pp. 185-186.
Públicos/Formato
O Seminário Internacional Queirosiano destina-se a todos os interessados na obra queirosiana e na área cultura / literatura / media, nomeadamente a professores (sobretudo, Ensino Secundário), estudantes universitários nacionais e internacionais (graduação e pós-graduação), estudiosos e pesquisadores nas áreas de Ciências de Comunicação, Estudos Culturais e Literários, Turismo Literário.
O formato do Seminário Internacional Queirosiano corresponde a um padrão, com uma tradição consolida desde 1998. Vd. as temáticas das últimas edições: Atividades
Com cada edição, as temáticas e as leituras recomendadas variam.
Leituras recomendadas
- Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro (1875);
- Eça de Queiroz, O Primo Basílio (1878);
- Eça de Queiroz, Os Maias (1888);
- Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras (1901).
Coordenação Científica
Orlando Grossegesse
Professor associado da Universidade do Minho. Desde 1990 é docente / investigador nas áreas de Literatura e Cultura Alemãs e Comparadas, Tradução e Comunicação Multilingue. Desde 2004 também ensina Estudos Queirosianos, com orientação de mestrados e doutoramentos. Estudou Filologias Românicas e Comunicação Social na Universidade de Munique onde se doutorou em 1989 com uma tese sobre a relação entre conversação e discurso literário na obra queirosiana, publicada sob o título Konversation und Roman (1991). Publicou numerosos estudos no âmbito das Filologias Alemã, Portuguesa, Espanhola e Comparada.
Para além da tese de doutoramento, as publicações em livro mais relevantes são: Saramago lesen. Werk – Leben – Bibliographie (1998; 2ª ed. ampliada e atualizada 2009); atas de colóquios e congressos (organizadas ou co-organizadas), entre outras: «O estado do nosso futuro». Brasil e Portugal entre identidade e globalização (2004); com Henry Thorau, À procura da Lisboa africana (2009); com Mário Matos, Mnemo-Grafias Interculturais (2012). Director adjunto da Queirosiana (org. das últimas cinco edições: 15-17; 18-20; 21/22; 23/24; 25/26). Membro do Conselho Administrativo e da Comissão Coord. do Conselho Cultural da FEQ. Desde 2013 coordena os Seminários Internacionais Queirosianos. Fundou em 2016 o Centro de Estudos de Tradução (CET-Tormes) associado à FEQ.
Professores Convidados
Maria Serena Felici (organizadora temática deste seminário)
Doutora em Lingue, Letterature e Culture Straniere pela Università Roma Tre, com tese sobre Eça de Queiroz. É autora dos volumes Alla periferia del progresso. Le correnti politiche ottocentesche in Eça de Queirós e Leopoldo Alas ‘Clarín’ (Sette Città, 2019) e Lusitania. Roma nella letteratura portoghese e brasiliana del Novecento (Edilazio, 2020), de traduções do português para o italiano e de vários estudos queirosianos. Atualmente, é docente de língua portuguesa e culturas e literaturas lusófonas na Università degli Studi Internazionali di Roma (UNINT). Faz parte do Grupo Eça (Brasil), do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), do AISPEB (Associazione Italiana Studi Portoghesi e Brasiliani), do Observatório da Língua Portuguesa e de vários outros grupos de investigação e é professora visitante na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Os seus estudos visam aprofundar a língua portuguesa e as literaturas lusófonas dos séculos XIX, XX e XXI.
Mariagrazia Russo
Directora da Faculdade de Interpretação e Tradução e Professora catedrática de Língua e Tradução Portuguesas na Università degli Studi Internazionali di Roma (UNINT), onde dirige a Cátedra “Vasco da Gama” do Instituto Camões. Formou-se em Roma, onde fez na Universidade “La Sapienza” os estudos académicos até ao Pós-doutoramento em Filologia Românica e Investigação Textual, e em Paris, onde conseguiu na Sorbonne IV o Diplôme d’Études Approfondies en Etudes Portugaises, Bresiliennes et de l’Afrique Lusophone. É autora de várias obras nas áreas da literatura, da história e da língua em relação aos países de língua oficial portuguesa: destacam-se os volumes Um só dorido coração. Implicazioni leopardiane nella cultura letteraria di lingua portoghese (2003) e Não morri porque cantei… Quadras inéditas de Sebastião da Gama (Arrábida, 2003), além de outras monografias. Numerosos os estudos de arquivos e fundos de bibliotecas com documentos inéditos que dizem respeito à historiografia de viagem e diaspórica. Tem uma ampla produção em âmbito queirosiano e é tradutora para a língua italiana de O Conde de Abranhos. Os seus estudos tocantes a língua visam aprofundar a linguística missionária, de contacto, fronteira e herança, a toponomástica, lexicografia e tradutologia.
Giorgio de Marchis
Professor catedrático de Literatura portuguesa e brasileira no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas Estrangeiras da Universidade Roma Tre, onde coordena a Cátedra Camões I.P. “José Saramago” e a Cátedra “Agostinho Neto”. Sobre a obra de Eça de Queiroz escreveu vários artigos e ensaios publicados em Itália, em Portugal e no Brasil e um volume onde se comparam as correspondências parisienses de Mário de Sá-Carneiro e Carlos Fradique Mendes (O silêncio do dândi e a morte da esfinge, Lisboa, IN-CM, 2007).