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Evocação Fúnebre de Eça de Queiroz – Discurso do Presidente da Fundação Eça de Queiroz no Panteão Nacional

No dia 8 de Janeiro de 2025, o Panteão Nacional foi palco da Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Eça de Queiroz, figura incontornável da literatura portuguesa. A evocação fúnebre, conduzida por Afonso Reis Cabral, presidente da Fundação Eça de Queiroz, destacou o impacto intemporal da obra do escritor na cultura nacional e no património literário universal.
Eça no Panteão Nacional

A leitora que, não tendo livros em casa, aguarda na rua pela carrinha da biblioteca itinerante, na esperança de ler mais um livro do escritor que descobriu por acaso, como se fosse um segredo apenas seu.

Os milhares de brasileiros que, tomados pela paixão de o ler, sabiam de cor excertos e falavam das personagens como se fossem pessoas conhecidas e que – lenda ou não –, atribuíam entre si, em jeito de desafio, os nomes de Maria Eduarda, Carlos, Amélia ou Jacinto, e a qualquer mau jornalista a alcunha de Palma Cavalão.

O rapaz dos Açores que encontra numa papelaria a obra que gostaria de ter escrito e que, vendo-a escrita pelo autor de Os Maias, decide dedicar-lhe uma vida de estudo e vem a tornar-se num enorme queirosiano.

O leitor do ensino secundário a quem a vida está na iminência de se precipitar e que, enquanto espera – enquanto ainda é cedo –, encontra respostas a dúvidas que nem sequer sabia ter.

As Honras de Panteão Nacional acolhem a posteridade de Eça de Queiroz numa casa que se quer dos que permanecem no imaginário. Até dos que mudaram o imaginário colectivo, como Eça certamente mudou.

Eça de Queiroz não se contém num único Eça de Queiroz.

O aluno de Coimbra que participou à distância nas polémicas de então; o conferencista que apresentou Portugal a uma nova literatura que veio a impor como sua e nossa; o cronista farpeador; o diplomata que olha o país com a mais próxima das distâncias; o romancista que se estreia com O Crime do Padre Amaro, romance enorme que sofreu a censura de várias épocas; o autor de O Primo Basílio, onde concebeu o célebre conselheiro Acácio, essa sumidade do vazio; o construtor de Os Maias, a maravilhosa concretização de um falhanço – o de um certo país que Eça enfrentava naquela segunda metade do século XIX; e o dele próprio, aperfeiçoador obsessivo da língua que quis compor o quadro do país em vários livros curtos, mas que acabou por o resumir num único grande livro que se fez obra-prima. Que gloriosa derrota! E até o citadino que se encanta literariamente pelas serras e as descreve como contraponto a uma civilização confortável, mas desencantada. As mesmas serras de Santa Cruz do Douro, em Baião, descritas por ele como “de fartura e paz, bendita[s] entre as serras”, que agora, generosamente, o devolvem à Lisboa que amou e criticou – a cidade onde esteve sepultado por quase noventa anos.

Na obra de Eça, como se costuma referir, existe o retrato crítico de uma certa sociedade, a ironia, o país ingovernável, o Realismo por vezes quebrado, e uma língua portuguesa límpida daí em diante seguida como norma.

Mas eu quero ver mais para dentro, chegar ao coração universal da obra: encontro em Eça personagens que não compreendem a sua própria condição, que deviam corresponder a um ideal mas caíram, sem o saberem, e que são interessantes porque falharam (até João da Ega se aburguesou); deparo-me com o supremo desinteresse da perfeição, melhor, da aparência de perfeição (hoje tão comum nas nossas máscaras digitais) e sinto o tédio das coisas ordeiras que Eça fez Ulisses renegar num conto; vejo o banal misturar-se com o extraordinário (o episódio do chapéu de Vilaça no momento dramático da revelação); vejo personagens secundárias descritas com uma profundidade simples e terna, apenas ao alcance dos maiores escritores (os diálogos de Carlos com Rosa, a filha pequena de Maria Eduarda, o momento em que Baptista se encanta com a promessa de uma casaca, além de um hábito de Cristo, e as inquietações tristes de Juliana).

Podia referir outros aspectos – como o equilíbrio entre o destino e o acaso, ou a figura icónica de Fradique Mendes –, podia referir tantos mais, numa obra que nunca se resumiu às leituras doutrinais a que, ao longo do tempo, a tentaram sujeitar.

O polemista irónico, cheio de verve e de olho monocular, é talvez a faceta mais citada de Eça de Queiroz. Mas tal Eça ofusca ocasionalmente o grande artista, aquele que disse a Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, quando em 1875 lhe publicaram uma versão rudimentar de O Crime do Padre Amaro: “Eu dou-vos um borrão de romance – e vocês em lugar de publicar o romance publicam o borrão! […] Eu não sou um moralista; sou um artista; o artista é um ser nefasto, que não é responsável pelas suas fantasias, nem pelas suas vinganças. Sou ofendido na minha estética: vingo-me.”

Eça foi de facto um artista metódico e compulsivo que demorou com cada obra, sem contemplações ou pressas, o tempo que esta lhe pedia. Sem o artista que prometeu estrangular Antero de Quental, hoje não conheceríamos o escritor irónico usado como arma com que ainda se ameaçam os políticos – e alguns bem o merecem.

E assim Eça de Queiroz ergueu uma literatura em relação à qual outros escritores precisaram de se definir e, mais do que isso, é sua uma ideia que ainda temos de nós mesmos – a ideia de um Portugal vizinho, isto é, um país já distante no tempo, mas que a escrita deste grande artista fez nosso.

A obra de Eça de Queiroz continua a animar o imaginário dos leitores e mantém-se fundamental para a formação – a formação literária, mas também humana, enquanto pessoas e cidadãos, o que bastaria, por si só, para seguir como leitura obrigatória nos currículos escolares.

Quanto à carreira diplomática, saliento os alertas insistentes sobre a situação dramática dos chineses que emigravam via Macau para Cuba, onde acabavam, na prática, escravizados. Eça de Queiroz viu-os como eles eram, irmãos a precisar de ajuda, e os relatórios que enviou para Lisboa contribuíram para melhorar as suas vidas.

Por fim, há o homem.

Quem o conheceu retrata-o como tendo a graça e o espírito repentinos que reconhecemos na obra. Fizeram-se colectâneas de anedotas de Eça de Queiroz.

Vou contar uma:

Um dia, ao serão, os amigos falavam-lhe das consequências nefastas de nem sempre as pessoas dizerem a verdade. Eça respondeu: “Concordo que a mentira é uma coisa indigna, execrável, e perfeitamente nociva, mas creio que é, por enquanto, a única solução – quando não se quer dizer a verdade!” (ap. Oliveira Guimarães, p. 70)

E outra, já que se riram:

Um dia, vendo-se com as preocupações de dinheiro que sempre o afligiram (chegou a dizer que uma mercearia teria sido mais rentável do que uma obra-prima), comentou a um amigo: “O Montepio, menino, seria uma instituição excelente se nós pudéssemos tirar de lá o dinheiro sem, primeiramente, o lá ter posto!” (ap. Oliveira Guimarães, p. 70)

A filha mais velha descrevia-o como alegre, conversador e teatral, sempre doente embora incansável, não só nas tardes no consulado em Paris, como em casa, quando frequentemente se revezava por vários livros ao mesmo tempo durante as manhãs – em que escrevia de pé, vestido de pijama, à secretária alta iluminada por uma vela, pertences que ainda hoje se encontram em Tormes.

Aqui estamos para acompanhar Eça de Queiroz na manhã em que entra no Panteão Nacional.

Da leitora que aguarda pela carrinha da biblioteca itinerante, ao aluno do ensino secundário que aguarda pelos desafios da vida, e a tantos outros incontáveis leitores, Eça de Queiroz chega hoje ao Panteão Nacional em nossa companhia.

Que este dia seja o símbolo do nosso compromisso e agradecimento.

Panteão Nacional. Fotografia: Fundação Eça de Queiroz
Panteão Nacional. Fotografia: LUSA

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